sexta-feira, 2 de abril de 2010

Crônica

O dia do suicídio.

Vai ser hoje. Foi o primeiro pensamento do dia, um pensamento aparentemente inofensivo e que pode ter inúmeras aplicações. Mas, naquele dia espefico, com aquelas nuvens carregadas e cinzentas que cobriam todo o céu que até ontem era de azul puro e com um sol belo e glorioso. Esse pensamento também tinha um tom especifico e único que mudaria a vida de muitas pessoas.
Como era a sua rotina, acordou as dez para seis da manhã. Tomou um banho demorado, sentindo a água quente descer sobre o seu corpo preguiçoso, um calafrio percorreu por sua espinha, fazendo rir como uma criança. Vestiu-se com o uniforme que lhe era exigido na escola e desceu sem muita pressa os degraus que davam até a sua cozinha. Ali, como também era rotineiro, estavam os seus pais brigando por algo inútil.
Diferente, porém, da rotina ele não se limitou a dar uma de fantasma. Enquanto sua mãe falava alguma coisa que ele não sabia, já que sua mente não pensava nas palavras que ela estava proferindo com tanta ferocidade, abraçou-a com todo carinho e amor que ele podia. No susto, ela parou de falar e limitou-se a olhar espantada quando ele disse que a amava, em seus ouvidos.
Seu pai há essa hora estava calado, por isso não foi difícil dar-lhe um beijo na testa e olhar-lhe nos olhos com amor que poucas vezes demonstrava, chegou perto de seus ouvidos e lhe dizendo que o amava e que não deixasse sentir-se culpado por nada, porque ele não o culpava mais. Pegou algumas torradas que estavam em um prato perto da pia e saiu para a caminhada matinal, até a sua escola.
Sentiu a brisa ainda morna, devido à mudança brusca de temperatura, passar pelo o seu rosto. Sorriu, sem saber bem para quem estava sorrindo, apenas sorriu. Viu as folhas caindo da copas das árvores, anunciando a mudança de estação. Uma caiu perto de si, pegou-a e ficou observando como mesmo estando seca e morta, ainda possuía uma beleza rara e única, que somente nessa época era notada. A beleza da certeza que o seu trabalho fora concluído e com um toque de paz em saber que sua morte é só para garantir um novo recomeça.
Quando percebeu estava perto do colégio. As vozes das crianças que estavam animadas depois de um final de semana, contando as novidades, abraçando os amigos que não puderam ver. As vozes daqueles não tiveram um final de semana assim tão bom e que ansiava pela escola para poder desabafar seus problemas com aqueles que confiavam. Os choros dos pequenos que não queriam aquele tormento todo de ter que ir estudar. Tudo isso o atingiu com uma vida única, agora não era mais só vozes, eram sussurros de almas que clamavam ser ouvidos. Fechou os olhos e deixou-se sorrir ao identificar cada sentimento.
Com passos lentos, chegou até o local onde sempre encontrava o seu amigo. Observou cada menino e menina que passava por ti, como eles eram graciosos a sua maneira e até mesmo a feiúra, fazia parte de um quadro que apenas aos mais atentos fazia sentido. Então, como uma luz no meio desse quadro. Veio ele com o seu passo maroto e seu sorriso rápido, pose de alguém que é legal com todos, mas que guarda sempre um tempo para aquele que precisava, realmente do seu tempo. Ele.
As conversas foram às mesmas de sempre, riu das piadas e fez comentários quando era preciso. Mas, seu peito doía, a primeira dor do dia e talvez a ultima, ele pensou. Ponderou silenciosamente, enquanto sentia o seu coração batendo forte e enquanto deixava-o falando só sobre coisas que ele julgava ser interessante. Quando ele perguntou então o que estava se passando, ele limitou-se a sorri e a olhá-lo com serenidade única.
Nesse momento todas as vozes se calaram, até mesmo as do seu pensamento. Nesse momento, o ar saiu dos seus pulmões da forma metódica e lenta, como se soubesse que o tempo estava parado lá fora e ele não podia atrapalhar o momento tão sublime. Para ele foi à câmera lenta, o abraço que ele deu um abraço forte e demorado. Sentindo o calor e a pulsar do coração dele. Eu te amo de verdade, não como amigo e sim como amante, essas palavras saíram lentamente de seus lábios finos, ele as viu flutuando e brincando, mudando de cor e rodopiando, até chegar aos ouvidos dele.
Ao se afastar e caminhar de forma rápida, sentindo o rompante do tempo ao seu redor. Não pode deixar de rir. Se ele não tivesse tomado essa decisão, talvez nunca tivesse tido coragem de fazer, de contar o que lhe apertava o peito há tanto tempo. Riu, sorriu e até mesmo permitiu-se dançar enquanto descia aquela rampa de pedra em direção a sala.
Como ele tinha a chave, não foi um problema real abrir a porta. Trancou-a de volta depois que estava dentro, respirou profundamente o ar daquele ambiente esterilizado. Um dos poucos lugares que ele sentia-se bem, um dos poucos lugares que ele sabia que não iria fazer besteira. Seu peito martelou ao compasso do silencio profundo que caiu nesse momento. Local perfeito, ele pensou ao chegar perto da prateleira.
Suas horas ali dentro, tinha lhe dado um conhecimento exato, não só do que cada um daqueles frascos continha como também o que eles fariam se fosse bem manuseado. Pegou uns dois deles e levou até a bancada. Pegou os óculos frios de proteção, que sempre o deixava com uma cara estranha, lembrou-se quando ensinou naquela mesma bancada o porquê de ácidos e base se neutralizarem para o seu amor. Riu ao lembrar-se do que ele tinha feito, um beijo no rosto e um eu te amo, você salvou a minha vida.
Uma lágrima apareceu em seu rosto, porque também se lembrou de como ajudou a sua mãe a curar-se da azia, dizendo-lhe que como o leite era básico iria neutralizar o ácido do seu estomago e como isso também fez o seu pai sorrir de orgulho de um filho inteligente. Mas, ele tinha tomado uma decisão e a essa altura, os ácidos estavam misturados e tinha tomado o ponto ideal.
Levantou o copo e ficou a fitar o verde esmeralda que aquele líquido exibia orgulhoso, lembraram-se nesse momento dos olhos do seu irmão mais novo que ele tanto tinha invejado devido ao tom de verde que eles possuíam. Sorriu, como amava aquele molequinho que tanto perturbava a sua vida e nem tinha falado com ele para não acorda-lo de seu tão inocente sono.
Contudo, esse não foi só a única memória que lhe veio em mente. Já tinha visto aquela mistura em carne, quando o professor estava explicando o porquê de usar os instrumentos de proteção. Isso ativou cada molécula de seu corpo. Sentiu cada célula de sue língua se liquefazendo e virando nada além de um bolo indistinto de carne, sentiu o seu esôfago ardendo e se contorcendo em agonia enquanto o ácido descia até o estomago e virava uma bomba que destruía todo o seu corpo por inteiro.
Encontra ponto, lembrou-se da felicidade daquele seu ultimo dia de vida. Lembrou-se do amor que tinha demonstrado a seus pais e como eles tinham parado de brigar, lembrou-se de como tinha demonstrado amor ao seu amigo e ele fora receptivo, sabia que tinha, lembrou-se que das risadas puras e verdadeiras. Principalmente se lembrou que tinha vivido aquele dia e não se deixou viver por ele.
O que eu estou fazendo? A pergunta formou-se em sua mente. Pela primeira vez em muito tempo, ele tinha demonstrado o seu amor e tinha vivido o dia de forma graciosa. Não me deixo abater por um amor impossível e nem pela separação eminente de seus pais. Então, o amor que ele distribuiu pela manhã voltou para ele e não deixou que ele tomasse o veneno.
Deixou o pote na bancada e abriu a porta, então um raio de sol, ou melhor, de arco-íris entrou pela porta atingindo o seu rosto de forma límpida. Sorriu para aquela demonstração de carinho do mundo para consigo. Colocou um pé para fora e percebeu que tinha nascido não tinha renascido. Agora ele sabia como enfrentar seus problemas e sabia que não queria ir, não agora.
Assim, tocou o sinal para o recreio. Ouviu novamente os sussurros das almas dos meninos e das meninas dali. Viu o seu amigo brilhando no meio da multidão novamente e antes que ele pudesse fazer qualquer movimento, ele parou ao seu lado pegando em sua mão. Novamente sentiu o leve tocar do arco-íris e soube que o amor podia curar tudo.

Autor: João Pedro Correia Pinheiro da Silva


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Adoro o fato de ter um amigo que sempre consegue escrever coisas que me deixam pensativa. (L)'